A ideia
hoje era acordar mais cedo que de costume, queríamos chegar cedo em nosso
destino final. Mas exceto para mim, o sono rolava solto no quarto e Aline e
Quim estavam dormindo muito bem. Acordar mais cedo, durante estes dias de
pedalada, significa antes das 9h, pois apesar do cansaço depois de completarmos
nossos quilômetros diários, temos ido dormir por volta da meia-noite, ou até
depois. Finalmente acordamos todos e, à luz do dia, pudemos ver melhor pela
varanda e pela janela do quarto a vila onde estamos. É um lugar super calmo,
pequeno e pitoresco.
À noite fez
calor, mas a manhã se revelou fresquinha e prometia um dia lindo. Nestes dias
de pedalada, o clima tem sido ótimo. Superou nossas expectativas que não eram
muito otimistas, visto o volume e peso extra que carregamos com blusas, casacos
e capas de chuva, rsrsrs... Mas temos em nossa defesa que as semanas que
antecederam este passeio estava um tempo bem feinho, com ondas de frio, chuvas
eventuais, dias nublados ou de vento. Por isso adoramos ser surpreendidos, o clima
não podia ter sido melhor!
A casa em
que ficamos, de Marlene e Martin, é bem casa de família. Em geral, nos Chambres d’hôte em que já nos hospedamos,
quem vive na casa são casais de mais idade, acreditamos que geralmente
aposentados e com os filhos já crescidos e morando fora. Aqui eles vivem com um
filho adolescente e uma filha de uns 9 anos talvez. Foi um pequeno diferencial, mas não mudou muita coisa, pois nossa estadia foi rápida. Marlene e Martin foram muito atenciosos e simpáticos
conosco, batemos um bom papo sobre a região, sobre nossa viagem, sobre o
Brasil. Martin também falou sobre a vila, como ela foi ponto estratégico
durante a guerra, limite entre a zona livre e a zona ocupada pelos alemães e,
por isso, ponto de articulação pra retomada do país.
Nosso quarto era o da esquina, com janela pra uma rua e varanda pra outra. Martin na foto. |
Nos
despedimos, e já saindo, Marlene lembrou de nossa sobra da janta: meia baguete
e um pacotinho com três salsichas. Ontem, na saída de Chaumont, foi o que
conseguimos comprar pra poder ter uma janta ao chegarmos em Chargé. Na verdade
nós meio que “esquecemos” as salsichas
por que não queríamos mesmo levar. Mas tudo bem, "ensacola as salsichas!", rsss...
Eles nos
orientaram sobre o caminho Loire à velo, e disseram que sim, teríamos que subir
morros para continuar, e que o caminho do dia anterior também deveria ter sido morro
a cima (perdemos a indicação das placas em algum momento, mas nosso erro
resultou naquele mágico fim de tarde na margem do rio Loire, então está
valendo!). Lá fomos nós, partimos às 10h30, o horário mais cedo comparado aos
dias anteriores. Nossa preocupação com a hora pra chegar a Tours neste último
dia de pedalada era porque tínhamos um intervalo bem apertado de tempo para
devolver as bicicletas: entre 18h e 19h.
Já nos primeiros quilômetros encontramos o
morrão. Passamos por uma mulher neste ponto, ela pedalava sozinha, puxando um
remorque com DUAS crianças dentro. Uma guerreira que conseguiu seguir pedalando
até mais do que eu, se espremendo nas pedaladas derradeiras.
A região é
repleta de vinícolas e as plantações de uva ficam nestas partes mais elevadas,
pequenos planaltos. Vimos muitas vinhas e numa delas pegamos uns cachos pra
provar. Uvas pequenas, muito muuito suculentas. Como disse Joaquim: era suco de
caixinha natural (olha a referência da criança...)
Em 5 km já
estávamos em Amboise, onde fica um castelo lindo e o túmulo de Leonardo da
Vinci. Já havíamos visitado em 2011, então optamos em visitar o Clos Lucé, o
castelo onde Da Vinci viveu seus últimos anos. Além da residência, há um grande
jardim e várias invenções de Da Vinci reproduzidas. Um lugar super bacana mas
que bem podia ser mais barato: 15,50 euros por adulto e 11 euros pra Joaquim! Na
bilheteria, antes de mim, vi a senhora atendendo uns alemães em alemão. Quando
me atendeu, perguntei quais idiomas ela falava: francês, alemão, inglês,
espanhol, húngaro - e estava começando a aprender português. E é vendedora de
ingressos de castelo! Sabe a pessoa que parece feliz com o que faz?
Como
gastamos pouco com visitas a castelos nestes dias, achamos que valeria o
investimento. Fizemos um passeio maravilhoso dentro e fora do castelo. Com
tempo, aproveitando o tempo, vivendo fora do tempo. O dia lindo ajudou muito e,
sendo domingo, creio que tinha muitos franceses também aproveitando o dia.
Joaquim viu no mapa dos jardins que tinha um parquinho e logicamente fomos para
lá. Ele nem ficou muito tempo, mas foi
fundamental ter ido.
Joaquim brincando com uma versão de helicóptero do Da Vinci |
Reproduções de pinturas e desenhos de Da Vinci pelo jardim |
Dentro dos jardins também encontramos três restaurantes e resolvemos sentar no mais lindo pra comer algo antes de seguir caminho. Os preços? Regulam com os de Paris, o que significa para nós escolher entre as opções mais modestas do cardápio. Ainda assim foi mágico sentar ali entre o roseiral, os guarda-sóis brancos, a atendente hiper simpática...
Um dos restaurantes... |
Nosso restaurante rsrsrs |
Uma omelete e acompanhada de cerveja artesanal "Leonard" |
Assim como
em Chaumont, pudemos deixar as bicicletas num estacionamento próprio já dentro
da área do castelo e a bagagem em armários. Pensando bem, em outros castelos
que já fomos sempre tem estes armários. Lembro que em Fontainebleau havia uns
enormes.
Em Amboise ainda passamos por dentro da cidade,
aos pés do castelo que fica no alto. Passamos pela rua central empurrando as
bicicletas, pois ela é linda e valia a pena. Também estávamos procurando pelo
Office de Tourisme, pra pegar um mapa da região. De Orleans a Tours, passamos
por três departamentos (estados) diferentes e cada um dos Offices de Tourisme
tem um mapa apenas de sua região. Ali aproveitamos pra encher nossas garrafas
de água e descobrimos que até Tours ainda tínhamos 27 km pra percorrer. Eram
15h05. Bora pedalar!!
Aline e o castelo de Amboise |
Uma passadinha pelo calçadão central de Amboise... lindo! |
Andamos mais uns 7 km, e numa subidinha, nem
tão pesada assim, meu pneu traseiro furou. Estávamos entrando numa vila que
depois descobrimos se chamar Lussaut. Bem onde furou, haviam dois rapazes e uma
moça saindo de casa de carro e perguntamos se eles sabiam onde arrumar pneu de
bicicleta. Disseram que não havia na vila e nem deram muito papo. Entendemos
que deles não viria ajuda. Decidimos que Aline iria pedalando na frente,
procurando algum lugar ou alguém que pudesse ajudar. Apesar de termos um kit de
reparação e uma bomba... como é que se faz isso? Nem desmontar o pneu a gente
sabia. Fui empurrando a bicicleta com Joaquim ajudando a empurrar o remorque.
Aline sumiu de vista. O vilarejo estava deserto, casas fechadas, vazio mesmo.
Mais adiante um casal jovem tomando banho de sol, afinal o dia estava lindo!
Mas não reagiram a nós passando e presumi que Aline tivesse falado com eles
(eram estrangeiros e só falavam inglês e não esboçaram menor interesse em
ajudar). Logo veio Aline descendo o morro, depois de uma curva, e disse que
falou com um rapaz que poderia tentar nos ajudar. Ela disse que deu de cara com um lugar super
convidativo e imaginou que num lugar assim haveria de ter uma boa alma... e que quando eu visse iria entender.
Seguimos mais um tanto, e algo mágico apareceu!
Uma casa grande cujo muro da frente tinha expostos em todo o seu comprimento
uma imensa coleção de bules esmaltados, de diversas cores e designs. Entre os
bules, aqui e acolá, pequenas esculturas do art
nouveau à Mickey Mouse. E na fachada do muro estavam dispostos diversos
quadros, alguns impressos, outros pintados e outros bordados. Era ali. Fomos
chegando e o rapaz saiu de dentro de uma cova. Vimos muito aqui na região,
casas, vinícolas, bares (como aquele onde tomamos um vinho branco no final da
tarde de ontem) cavados nas rochas. Ele saiu de dentro de uma cova destas que
estava no quintal lateral da casa. E ele realmente sabia como trocar um pneu.
Pegou o kit, desmontou a bicicleta (é tão fácil!!!), descobriu o furo, que foi
já num reparo anterior. Comentei que ele sabia o que fazia e ele disse que não éramos
os primeiros a parar ali pedindo ajuda por isso acabou pegando prática, embora não
fosse seu trabalho.
Tudo certo, tudo arrumado, uma sensação enorme
de alívio e felicidade! Perguntamos sobre os bules no muro, e ele disse que foi
sua bisavó que começou a coleção e a família foi dando continuidade. E que até
já fizeram uma matéria pro canal 3. Antes de sair, perguntei o nome dele:
Ângelo. Hehehe... Disse a ele que foi nosso anjo naquele dia.
O muro de bules, quadros e bibelôs onde morava um anjo. |
Olhamos o relógio e o sentimento de que ainda
poderíamos chegar a tempo em Tours voltou. Mas precisaríamos de foco. Seguimos
o caminho felizes e, passados mais alguns quilômetros, o mesmo pneu furou
novamente! Estávamos numa zona urbana, mas daí pensamos que, tendo visto “o
anjo” trabalhar, já aprendemos tudo. Desmontar o pneu foi fácil. Agora, tirar a
câmera de dentro.... foi eu tentando, Aline, eu de novo, Aline de novo, os dois
juntos, só um, mais outro... e o tempo passando. A estas alturas já estávamos
nos convencendo de que poderíamos entregar as bicicletas no dia seguinte,
pagaríamos uma diária extra se fosse o caso.
Bem, depois de uns 20 minutos tentando tirar a câmera do pneu, abordamos um
casal de mais idade que passava. Eram holandeses e só falavam holandês. O cara
sabia trocar pneu, embora bem menos ágil que Ângelo. Depois de tirar a câmera,
ele fez um gesto pedindo algo e quando mostrei o kit de reparação, ele fez um
gesto de desprezo e foi pra sua bicicleta – achei que estava indo embora. Daí
pegou uma câmera nova, jogou pra mim e disse : “six euros”. Fazer o quê, né?
O cara suou bicas. Ele e a mulher conversavam
sei-lá-o-quê em holandês, falavam com a gente como se entendêssemos, riam, e
ele continuava a suar e a fazer o conserto. Enfim, novamente fomos salvos, agradecemos
muito, nos despedimos e cada um foi pro seu lado. Ele disse que o pneu estava
baixo, mas dali a uns 3 km teria um posto onde poderíamos encher mais.
Olhamos no relógio e eram 17h17. Ainda tínhamos
cerca de 12 km pra percorrer. O sentimento de esperança voltou a reinar e
pensamos ser possível percorrer isto em uma hora e meia. Se não furasse mais
algum pneu. Se não houvesse muitos morros íngremes que precisaríamos subir
empurrando as bicicletas, se não nos perdêssemos, se não surgissem outros
imprevistos.
Mandamos ver no pedal. Ficamos de olho, mas
nada de avistar o tal posto. Fui seguindo de pneu baixo, esperando que não
houvesse problema com isso. A cada tanto, conferíamos para ver se o pneu ainda estava
igual ou se estava esvaziando.
Avistei uma placa indicando 8 km até Tours. Era
17h44. O caminho seguia bem. Retomamos a margem do Loire, seguimos acreditando que chegaríamos a tempo. Passamos por outra placa que indicava 6 km.
Olhei no relógio e era 17h50 - que rápido. Mais um tanto, avisto outra placa
que indicava 6 km. Eita? Como assim? 6 km já era lá trás!
O Loire, a subida e alguns kms pela frente |
Pegamos uma subida leve mais longa. Aline
lembrou que precisávamos do endereço certinho. Na noite anterior mandamos
e-mail pro Frank pedindo a ele que mandasse por SMS e não havia chegado nada.
Depois da longa subida, paramos debaixo de uma ponte pois o sol não estava
fraco. Era 18h06 e telefonei pro Frank. A ligação estava ruim (embaixo da ponte, né... aff...). Mas
entendi que o endereço estava na fatura. Pedi mesmo assim que ele
enviasse por SMS, afinal onde estaria a fatura? Em qual bolsa? Embaixo de qual
coisa?
Uma placa indicava 2,5 km... mas qual era o
ponto de registro dos 2,5 km? O centro, a estação de trem, que era nosso ponto
de referência, ou a entrada da cidade? Logo começamos a entrar na zona urbana. Aline já tinha estudado o mapa antes em Chargé e tinha na cabeça mais
ou menos ideia de direção. Nisto, sinal de entrada de SMS. Paramos, conferimos
o nome da rua, olhamos o mapa e seguimos a toda.
Chegando a Tours margeando o rio Loire e logo ali o castelo de Tours. |
Logo avistamos o castelo e fomos seguindo as
placas do Loire à velo, que seguia pra onde acreditávamos que tínhamos que ir.
Entramos no centro, passamos a enorme catedral , numa esquina perguntei onde
era a estação de trem e logo chegamos. Conferimos o mapa. Era 18h26. Podíamos
relaxar que chegaríamos antes das 19h, afinal, já estávamos bem perto. Seguimos
na direção lida no mapa. Depois de mais
uma pedaladas, conferimos novamente no Google maps e estávamos na direção
errada!!! Jisuis Cristinho!
Conferimos, olhamos pra cá, pra lá, e tomamos
rumo. Até que avistamos uma placa indicando a rua. Precisávamos ir ao número
35, estávamos no 4. Foi uma contagem
casa a casa até vermos o 35! Chegamos!!!! Ebaaa!!!
Entrei na loja pra falar com o atendente e quem
estava lá dentro? A Moça guerreira do remorque com as duas crianças. Dei um olá
simpático, mas a cara da moça foi a mesma da subida do morro, nada amistosa.
O atendente não sabia do que se tratava quando expliquei
que estávamos devolvendo as bikes. Disse que não eram bicicletas da rede deles
e precisou dar uns telefonemas. Por fim, deu tudo certo.
Aline e
Joaquim descarregaram a bagagem, ficando tudo ali no meio da calçada mesmo:
mochilas, sacolas plásticas, de papel. E as salsichas? Realmente desapareceram.
Permanece assim, o mistério das salsichas. Devem ter caído sem percebermos durante
o percurso.
Sentamos os 3 exaustos, felizes, sorridentes,
suados pra caramba, vencedores. Foram 34 km hoje, um total de 165 km em 5 dias.
Nós, reles pessoas comuns, sedentários, ingênuos, despreparados. Nós,
inspirados por alguns amigos e parentes bicicleteiros, por desconhecidos
anônimos de diferentes nacionalidades pedalantes na França.
Foram cinco dias lindos, intensos, dos quais
contamos as pequenas desgraças por as acharmos cheias de graça. Dois furos de
pneu, um joelho e meio ralados, meia picada de vespa, vários caminhos errados,
muitos atrasos, centenas de bonjours
aos nossos colegas pedalantes, cinco camas maravilhosas, dezenas de litros de
água. Paisagens incríveis, paisagens comuns: rio Loire, pontes, floresta,
plantações de maçã, de milho, vinhas, de girassóis tristes, morros, covas,
asfalto, pedras, areia. E nós.
...
...
Depois desse momento de idílio, de sentir o gostinho da conquista, seguimos para nosso hotel em Tours - Hotel Moderne - apesar do nome, é um hotel antigo que fica
bem próximo à estação de trem, super bem localizado, em uma rua tranquila. Chegamos
carregando as mochilas e sacolas que se multiplicaram nestes 5 dias. O quarto do hotel era super bom, espaçoso e com camas bem
confortáveis.
Chegamos sedentos. Aline e Quim foram tomar
banho enquanto fui buscar bebidas e um petisco. Não sobrou uma gota de água da
viagem. Depois de beber, petiscar, banhar e descansar um pouco, saímos pra
comer algo e fomos direto assistir ao espetáculo de projeções de imagens na
fachada da catedral. Ao chegar na cidade, na corrida contra o tempo, passamos
velozmente em frente à catedral, mas eu vi montada uma torre com projetores e
nos explicaram na recepção do hotel que o espetáculo começava as 22h15. E quem vemos pela rua quando íamos para a catedral? A guerreira hispânica nada simpática com os dois meninos... rsrrs. Em frente à catedral, muita
gente de todas as idades ali, conosco, sentados no chão.
Após a apresentação, fomos seguindo a multidão
que se dispersava pelas ruelas estreitas em direção ao rio Loire. Revimos o
castelo, discreto ali. Sobre o rio, diante de nós, uma ponte azul destinada a
pedestres que nos atraía como as mariposas são atraídas pela luz. Seguimos pela
ponte sem saber para onde ia. Debaixo de nós, nosso companheiro, o rio Loire. À
esquerda, distante, uma ponte de pedra iluminada. Num instante, uma revoada de
aves brilhava no céu cruzando um faixo de luz que lhes dava um brilho especial.
Na longa ponte azul, em meio a escuridão, estávamos como no espaço sideral. Não
havia pressa, não havia tempo, não havia espaço a ser percorrido, lugar algum
para chegar. Apenas nós. Sentimento de realização. Amor. Felicidade.
Posfácio:
Segunda pela manhã nós ajeitamos as malas,
tomamos o café no hotel e pegamos o trem rumo à Paris.
Esta aventura terminou. Mas começamos outra
aventura: uma semana de carro pela Córsega. Viva o verão!
Oi Aline e Isma
ResponderExcluirPrimeira cicloviagem de muitas. Espero
Uma das grandes alegrias da pedalada realmente é a chegada no destino.
Não porque acabou, mas pela sensação de ter completado um objetivo. Especialmente por ter ter chegado ao objetivo, não transportado por uma máquina mas pelo próprio esforço.
Parabéns.
Espero o relato da próxima.
Abs